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FREUD NO FUTEBOL – Crônicas de Futebol de Nelson Rodrigues

Muitas vezes o craque está em perfeita forma física, mesmo assim o seu desempenho em campo é lamentável. É sempre importante lembrar que o futebol não é somente técnica e tática, existem também as emoções, individuais ou coletivas, que se não estiverem estabilizadas podem afetar o resultado de uma partida.

Tratando deste tema, segue mais uma interessante crônica extraída do livro “À Sombra das Chuteiras Imortais”, escrita por Nelson Rodrigues.

Aviso: No final da página tem uma música para você ouvir durante a leitura.

Nelson-Rodrigues
“FREUD NO FUTEBOL

Um amigo meu que foi aos Estados Unidos informa que, lá, todo mundo tem o seu psicanalista. O psicanalista tornou-se tão necessário e tão cotidiano como uma namorada. E o sujeito que, por qualquer razão eventual, deixa de vê-lo, de ouvi-lo, de farejá-lo, fica incapacitado para os amores, os negócios e as bandalheiras. Em suma: — antes de um desses atos gravíssimos, como seja o adultério, o desfalque, o homicídio ou o simples e cordial conto-do vigário, a mulher e o homem praticam a sua psicanálise.

O exemplo dos Estados Unidos leva-me a pensar no Brasil ou, mais exatamente, no futebol brasileiro. De fato, o futebol brasileiro tem tudo, menos o seu psicanalista. Cuida-se da integridade das canelas, mas ninguém se lembra de preservar a saúde interior, o delicadíssimo equilíbrio emocional do jogador. E, no entanto, vamos e venhamos: — já é tempo de atribuir-se ao craque uma alma, que talvez seja precária, talvez perecível, mas que é incontestável.

A torcida, a imprensa e o rádio dão importância a pequeninos e miseráveis acidentes. Por exemplo: — uma reles distensão muscular desencadeia manchetes. Mas nenhum jornal ou locutor jamais se ocuparia de uma dor-de-cotovelo que viesse acometer um jogador e incapacitá-lo para tirar um vago arremesso lateral. Vejam vocês: há uma briosa e diligente equipe médica, que abrange desde uma coriza ordinaríssima até uma tuberculose bilateral. Só não existe um especialista para resguardar a lancinante fragilidade psíquica dos times. Em conseqüência, o jogador brasileiro é sempre um pobre ser em crise.

Para nós, o futebol não se traduz em termos técnicos e táticos, mas puramente emocionais. Basta lembrar o que foi o jogo Brasil x Hungria*, que perdemos no Mundial da Suíça. Eu disse “perdemos” e por quê? Pela superioridade técnica dos adversários? Absolutamente. Creio mesmo que, em técnica, brilho, agilidade mental, somos imbatíveis. Eis a verdade: — antes do jogo com os húngaros, estávamos derrotados emocionalmente. Repito: — fomos derrotados por uma dessas tremedeiras obtusas, irracionais e gratuitas. Por que esse medo de bicho, esse pânico selvagem, por quê?

Ninguém saberia dizê-lo. E não era uma pane individual: — era um afogamento coletivo. Naufragaram, ali, os jogadores, os torcedores, o chefe da delegação, a delegação, o técnico, o massagista. Nessas ocasiões, falta o principal. Estão a postos os jogadores, o técnico e o massagista. Mas quem ganha e perde as partidas é a alma. Foi a nossa alma que ruiu face à Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai. E aqui pergunto: — que entende de alma um técnico de futebol? Não é um psicólogo, não é um psicanalista, não é nem mesmo um padre. Por exemplo: — no jogo Brasil x Uruguai entendo que um Freud seria muito mais eficaz na boca do túnel do que um Flávio Costa, um Zezé Moreira, um Martim Francisco. Nos Estados Unidos, não há uma Bovary, uma Karênina que não passe, antes do adultério, no psicanalista. Pois bem: — teríamos sido campeões do mundo, naquele momento, se o escrete houvesse freqüentado, previamente, por uns cinco anos, o seu psicanalista. Sim, amigos: — havia um comissário de polícia, que lia muito X-9, muito Gibi. Para tudo o homem fazia o comentário erudito: — “Freud explicaria isso!”. Se um cachorro era atropelado, se uma gata gemia mais alto no telhado, se uma galinha pulava a cerca do vizinho, ele dizia: — “Freud explicaria isso!”. Faço minhas as palavras da autoridade: — só um Freud explicaria a derrota do Brasil frente à Hungria, do Brasil frente ao Uruguai e, em suma, qualquer derrota do homem brasileiro no futebol ou fora dele.”

* Hungria 4 x 2 Brasil, 27/6/1954, em Berna. Uruguai 2 x 1 Brasil, 16/7/1950, no Maracanã.
[Manchete Esportiva, 7/4/1956]

Crônicas de Futebol – Nelson Rodrigues

Por Karen Bachega

Há pouco tempo comecei a deliciar-me com o livro “À Sombra das Chuteiras Imortais”, que trata-se de uma seleção de crônicas de futebol escritas por Nelson Rodrigues para o Manchete Esportiva na década de 50.

Incrível como as crônicas parecem atuais. Por exemplo, esta que escolhi para compartilhar com vocês hoje. “O Riso”, fala da vaidade que sustenta o futebol, da publicidade histérica e da ausência de modéstia. Talvez seja isso que falta para o futebol ser realmente uma arte.

Boa leitura !

Nelson Rodrigues
“O RISO

Eis a verdade: — o que sustenta, o que nutre, o que dinamiza o futebol é a vaidade. Vejamos o juiz. É um crucificado vitalício. Seja ele o próprio Abrahão Lincoln, o próprio Robespierre, e a massa ignara e ululante o chamará de gatuno. Dirá alguém que ele percebe um bom salário. Nem assim, nem assim. Não há dinheiro que o compense e redima, nenhum ordenado que o lave, que o purifique. E, no entanto, ele não renuncia às suas funções nem por um decreto. Pergunto: — por que esta obstinação? Amigos, a vaidade o encouraça, a vaidade o torna inexpugnável, a vaidade o ensurdece para as 200 mil bocas que urram: — “Ladrão! Ladrão! Ladrão!”.

O mesmo acontece com o craque, com o paredro, com o técnico. O futebol os projeta e pendura nas manchetes, e esta publicidade histérica constitui uma delícia suprema. E ninguém é modesto, ninguém. Qualquer jogador, ou qualquer dirigente, ou qualquer técnico tem a torva e a vaidade de uma prima-dona gagá, cheia de pelancas e de varizes. Eu disse que ninguém é modesto no futebol. Em tempo retifico: — há, sim, uma única e escassa figura, que, no meio do cabotinismo frenético e geral, constitui uma exceção franciscana. Refiro-me ao esquecido, ao desprezado, ao doce massagista.

A imprensa e o rádio falam de tudo, numa sádica e minuciosa cobertura. Jamais, porém, um locutor, um repórter lembrou-se de mencionar a atuação de um massagista. Ele não merece, ao menos, uma citação desprimorosa. Um bandeirinha consegue ser vaiado. Não o massagista, que não inspira nada: — nem amor, nem ódio. Dir-se-ia que o gandula é mais importante. E, no entanto, apesar da humildade sufocante de suas funções, o massagista pode ser uma dessas figuras capitais, que resolvem o destino das batalhas.

Para não ir muito longe, citarei o exemplo de Mário Américo. Tudo na sua figura de “ex-boxeur” justifica uma simpatia universal, a começar pela cabeça minuciosamente raspada, até o último vestígio de cabelo. Esse coco lustroso e negro já o distingue dos demais, em violento destaque. Pois bem: — simples e humilde massagista, Mário Américo influi mais nos fatos do campo, na evolução das partidas, que muito jogador, muito paredro, muito técnico. E não é com massagens platônicas, não é fazendo seu métier, que o homem tem decidido vários jogos. Mário Américo age pelo riso, apenas pelo riso. Sim, amigos: — quando ele se abre, quando se escancara, quando se alarga no seu riso incoercível, não há força que o contenha e que lhe resista. Mário Américo sério é um pobre ser, duma esplendorosa nulidade como todos nós. Mas a gargalhada o transfigura, dá-lhe uma nova dimensão racial, uma grandeza inesperada e terrível, o equipara a certos negros da ficção e da vida: — Paul Robeson, José do Patrocínio, Otelo, imperador Jones etc.

Sobretudo nas pelejas internacionais, tudo, nesse homem de cor, é um riso só: — riem os lábios, as gengivas, os dentes, as ventas e até a careca retinta. Foi o que aconteceu no Brasil x Argentina*, em Montevidéu. Luizinho deu um corte num adversário de forma tão espetacular que Mário Américo não resistiu: — nunca o seu riso foi tão largo, nunca o seu riso teve, como naquele momento, uma dilatação de parto. E aquela cara que ria alucinou os nossos adversários. Como vencer uma gargalhada cósmica? Se pudessem, os argentinos teriam atravessado aquele riso com uma lança, como nas gravuras de são Jorge.”

[Manchete Esportiva, 8/3/1956]
* Brasil 1 x 0 Argentina, 5/2/1956, no Estádio Centenário.

NOITE RODRIGUEANA

“Tricolores, dando uma de Nelson Rodrigues: estava escrito ha 10000 anos que o Fluminense faria uma noite histórica!”

Este trecho acima foi escrito por mim no Twitter, uma hora antes do jogo entre Fluminense x América do México. Foi um sentimento que seria sofrido, mas teria de ser, só assim o time de guerreiros, que cada vez mais se torna realmente um grande símbolo de orgulho de uma geração de tricolores que viram vitórias épicas e viradas sensacionais, feito que este grupo de jogadores proporcionou nos últimos dois anos.

A noite de ontem tinha tudo para dar errado, uma falha desastrosa de um goleiro que está numa fase muito boa, mas deixou a bola cair no momento em que mais não deveria ou realmente sem aquilo não teria sabor? Logo depois, um dos grandes pilares deste grupo de guerreiros meteu a cabeça, sem medo, com gana, foi assim que Gum empatou a peleja.

O Fluminense foi valente, comandado por um auxiliar que também o é. Foi um time em busca da vitória o tempo inteiro, mergulhando intensamente para mostrar quem manda ali no pedaço, há muito não se via uma vontade imensa de dizer que não se pode subestimar os guerreiros. Mesmo após tomar o segundo gol dos mexicanos, num gol espírita, mas também houve falha.

Quando tudo estava parecendo perdido, desclassificação precoce e vergonhosa, surge certo camisa 20, ele que sob desconfiança de boa parte da torcida tricolor, consegue na raça e categoria um cruzamento para cabeçada certeira e fria de Araújo, pronto, ali acendeu novamente um fogo imenso pela vitória, na hora certa, quando começavam as primeiras vaias, provavelmente vindo daqueles torcedores que não sabem nem a escalação do time, que assistem o jogo sentado em um camarote.

Houve briga, a bola parecia um prato de comida para aqueles homens que sofreram durante dias sem um comandante, sem um cara para olhar do lado e dizer calma, ledo engano, existia um corajoso auxiliar que deixou o time altamente ofensivo, sem medo de tomar um contra-ataque dos mexicanos e os mesmos desperdiçarem de fechar o caixão, houve coragem de querer, de vencer, mesmo sofrendo consequências drásticas.

Ali estava o Fluminense, com sua torcida inflamando, cantando o famoso hit que ocupará por muitos anos e contagiará futuros jogadores ao vestir a camisa tricolor “guerreiro, guerreiro, time de guerreiro!”. Deixo uma pausa para um comentário que fiz para um amigo durante o empate: “O gol vai sair aos 42 do segundo tempo!”. Voltando para o relato, quando numa tentativa que seria a última, no apagar das luzes, uma cabeçada tortuosa de Fred para área, cai em um mexicano que desvia também de cabeça. Como se fosse o sobrenatural de Almeida a empurrar a bola para ele, que chegou a pensar em desistir da pelota, lá estava esticando sua perna. Era aquele camisa 20! Era o homem da noite, era Deco ajoelhando após o feito, pois foi assim que a torcida ficou após a épica vitória, de joelhos. Agradecendo a João de Deus e com largo sorriso deixando claro que é muito bom ser tricolor e assim será sempre.

P.S. O gol saiu aos 42 do segundo tempo. Deixando assim uma esperança enorme para os guerreiros seguirem em frente e também pensar no próximo final de semana em jogar na megasena, vai que também acerto.

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=tO85oTl2I8E&feature=fvwrel[/youtube]

essa torcida merece!